Selecções do Reader`s Digest

Sofia Aparício «Gosto muito de pessoas; odeio gente.»
Sofia Aparício, 34 anos, top model. Quem é ela? «Sou neta das minhas avós, filha do meu pai e da minha mãe, e não passo disso. Sempre disse que a Sofia Aparício é o que cada um fizer na sua cabeça.»Estúpida, ela? «Quanto mais estúpida pensam que sou, mais vantagem me dão».
Para esta entrevista, aninhou-se sobre si, descalça e sem maquilhagem; revelou-se tanto quanto a sua natureza tímida lho permite.
Selecções do Reader`s Digest -
Em circunstâncias não-profissionais de que assuntos gosta de falar?
Sofia Aparício
- Sou pouco faladora.
SRD - Todavia, consegue perceber constantes, temas recorrentes das suas conversas?
SP - Empolgam-me as conversas cujo tema são os direitos. Das pessoas, dos animais. Mas não são necessariamente as conversas que gosto de ter. Porque me emociono.
SRD - Isso eu já sabia de si: que não é muito faladora e que, a despeito de uma enorme sensibilidade, evita revelar comoção. O que eu não sei é porquê.
SP - Porque sou sozinha no Mundo e tenho que me defender. Tenho uma profissão, desde muito nova, em que sou agredida de várias formas. Não me estou a queixar, de maneira nenhuma, gostei da vida que tive e faria tudo igual. Mas a verdade é que, teenager ainda, me vi confrontada com o mundo das pessoas crescidas.
SRD - Sentia que os adultos invadiam um espaço que era ainda de descoberta?
SP - Falhei uma fase de crescimento. Aquela em que as pessoas vão para praia, de férias, com os amigos. A adolescência, saltei-a. Comecei a trabalhar, comecei a ganhar dinheiro para ser independente, e isso é viciante. Faço tudo pela minha liberdade. Abdiquei da minha adolescência para ser mais livre. Os meus pais deram-me bases e não correu mal – podia ter corrido... Entrei num mundo agressivo, é preciso ter uma estrutura forte para não descarrilar.
SRD - Explique-me melhor o que é que pode ser tão agressivo.
SP - Pode ser agressivo ser tratada aos 15 anos como uma mulher adulta. Se somos assediadas aos 22, 23, sabemos defender-nos. Aos 15 anos pensamos: «O que é que me está a acontecer, quem são estas pessoas, porque é que me tratam assim?». Aos 15 anos tive que me defender como uma mulher adulta. Fui ficando, assim, cada vez mais defensiva, protegendo-me.
SRD - É o que se pode chamar uma menina de boas famílias: a sua mãe é médica, o seu pai engenheiro. Por que é que foi tão importante conquistar cedo uma independência financeira?
SP - Os meus pais só tinham que me dar bases para me aguentar na vida. Os meus pais casaram-se cá em Portugal, não tinham muito dinheiro, foram para Angola. Ficaram muito bem na vida. Tínhamos uma vida óptima, lá.
SRD - Viveu em África até aos 4 anos. Regressaram com o 25 de Abril?
SP - Sim. Entretanto, os meus ficaram sem nada, como toda a gente, e hoje em dia vivem outra vez muito bem.
SRD - O que recorda desse período, quer de África, quer da transição?
SP - Lembro-me perfeitamente da minha casa. Lembro-me de estar debaixo das escadas com a Laura, a senhora que me criou, quando havia tiroteio, de não ter medo nenhum. Lembro-me de um macaco do vizinho. Lembro-me de um senhor que não tinha a unha do polegar. Lembro-me de chegar ao colo de uma amiga dos meus pais à quinta da minha avó.
SRD - Em Viana do Castelo?
SP - Numa aldeia ao pé de Viana. Tenho recordações óptimas da minha infância em Viana do Castelo. Fiquei com a minha avó até aos 8 anos. A minha irmã ficou num colégio interno no Porto. A minha mãe, que é óptima médica, ficou logo na Estefânia, e o meu pai ficou uns anos em Viseu. Só depois nos juntámos todos.
SRD - Apesar da dispersão geográfica o espírito de família manteve-se?
SP - Acho que sim. Os meus educadores foram os meus pais e as minhas duas avós. Os meus pais são pessoas muito fortes, tenho por eles uma admiração que não cabe dentro de mim. O que eles já passaram, o que eles conseguiram, é impressionante. As minhas avós, por serem mais antigas, deram-me valores muito fortes. É por eles que me rejo hoje em dia.
SRD - Aponte um.
SP - A minha avó, que era uma senhora da aldeia, era das pessoas mais justas que já conheci. Levava uma quinta para a frente, nunca a vi gritar com ninguém, nunca a vi maltratar ninguém e toda a gente fazia tudo o que ela pedia. Porque era realmente boa. Ensinou-me sobretudo a não fazer mal aos outros. Ensinou-me, enfim, as coisas básicas e óbvias que toda a gente sabe que estão certas e nem sempre põem em prática...
SRD - Em si foram bem inculcadas, e por isso é tão sensível à defesa dos direitos.
SP - Talvez. Às vezes sou demasiado escrupulosa. Em certas coisas podia ser mais flexível...
SRD - Estávamos a tentar perceber porque é que uma rapariga de boas famílias quer ter a sua independência financeira tão cedo.
SP - Acho que isso não tem explicação. Sou assim. Ainda hoje, é muito importante ser eu a comprar a minha casa, as coisas que quero para minha casa.
SRD - Vamos pôr a seguinte situação: de repente fica um bocado aflita de dinheiro... Teria coragem para pedir aos seus pais?
SP - À minha irmã, primeiro, talvez. Os meus pais deram-me o mais importante, não quero que se preocupem comigo. Não acho que os decepcionasse. Eles sabem quando tenho menos dinheiro, mas também sabem como sou. Sei que estão lá, e isso é um conforto muitíssimo bom. Mas conto comigo. Sinto-me melhor, cresço melhor se passar algumas dificuldades. Saí de casa com 19, 20 anos; ao longo deste tempo nem sempre tive dinheiro suficiente. Já vivi numa pensão!, e gostei. Se tivesse pedido dinheiro aos meus pais, não tinha formado o meu carácter desta maneira.
SRD - Começou muito cedo: a fotografar aos 13 e a desfilar aos 15. Mas a carreira de modelo não se prefigurou como projecto de vida. Foi, inclusive, estudar Gestão.
SP - Eu não fazia ideia daquilo que queria ser. Sabia que não queria ser gestora, mas era boa aluna a matemática. Pelo menos tentei, pelos meus pais e por mim, mas não era o que queria fazer. Estava a trabalhar bastante como manequim e nem sequer gostava muito. Porém, quando quis sair da casa dos meus pais e tive que me fazer à vida, pagavam-me mais para ser manequim do que outra coisa qualquer. Pensei que já que tinha de fazer, o faria da melhor maneira possível, e acabei por gostar muitíssimo.
SRD - Não era estimulante porque não requeria um esforço extraordinário. A ferramenta base já a tinha: um corpo com as medidas certas e uma cara bonita.
SP - Não. Eu nasci muito torta e muito gorda. Não era aquela miúda para quem se olha e se diz: “Vai ser manequim”. E foi isso que me safou. Tive que trabalhar muito mais do que as outras para ser melhor do que as outras!
SRD - Foi o costureiro José Carlos, de quem a sua mãe era cliente, que a descobriu como potencial manequim. Quando olha para essas primeiras fotografias, o que é que sente?
SP - Olho para todas as minhas fotografias como sendo trabalho. Obviamente odeio todas as fotografias dos 13 anos, anos 80, pirosas, pirosíssimas! A única estranheza é essa.
SRD - Ainda se reconhece? O que é que mudou?
SP - A minha cara mudou muitíssimo, mudou a expressão, mudaram até os contornos. Os meus olhos não. A cara mudou por ter emagrecido e por tudo o que passei nesses anos. Acredito mesmo que o que somos por dentro se vê por fora.
SRD - O cabelo parece ser uma expressão de tudo o que viveu: sofreu mil e uma transformações, acompanhou as suas convulsões, e agora, apaziguada, voltou à cor natural, castanho escuro.
SP - Fui mudando... Nenhuma das coisas que fiz ao cabelo me ficaram mal porque fiz exactamente o que queria, na altura em que queria. Era, sim, uma expressão do que sentia. É meio caminho andado para as coisas funcionarem. Se formos induzidos, ficamos sem certezas e não fazemos tão bem. Gosto muito de mudar, preciso muito de mudar. Tudo. Preciso de mudar tudo na minha vida várias vezes.
SRD - É ansiosa?
SP - Sou um poço de contradições. Estas mudanças funcionaram como estímulo, fizeram-me gostar de ser manequim. Gosto de fazer bonecos, de brincar com a minha imagem. Nunca me vi bonita, nunca me olhei ao espelho e me achei bonita.
SRD - Nunca?
SP - Nunca. Não me faz infeliz não me achar bonita porque não sou uma má pessoa. A única coisa que quero na vida é ser uma boa pessoa.
SRD - Quando toma consciência do seu poder erótico instala-se a dúvida? «O que é que esta pessoa pretende de mim? Será que gosta mesmo de mim ou gosta da Sofia Aparício? Quer-me a mim ou quer o objecto de consumo desejado pelo país inteiro?»
SP - Por isso é que digo que tive que crescer muito depressa!, que falhei a fase da adolescência. Confrontei-me com esse tipo de situações, que hoje são muito fáceis de deslindar...
SRD - Consegue perceber rapidamente?
SP - Sim, até porque não me dou a conhecer como Sofia a muita gente, muito menos à primeira ou à segunda. Demoro. Essa dúvida existiu muitas vezes. Mas também é verdade que nunca lhe dei muita importância.
SRD - Em que termos se instalava a dúvida? «Quem é que sou realmente? O que é esperam de mim?»
SP - Quem sou realmente, acho que sei, que sempre soube. Sou neta das minhas avós, filha do meu pai e da minha mãe, e não passo disso. Sempre disse que a Sofia Aparício é o que cada um fizer na sua cabeça. Gostem ou não gostem, não estou minimamente interessada em mudar a opinião que têm de mim. Vê um carro num anúncio e gosta ou não gosta, é uma imagem de que gosta ou não gosta. A Sofia Aparício foi isso.
SRD - Uma ficção, no sentido em que cada um se apodera daquilo e faz daquilo o que quiser.
SP - Essas pessoas não entram na minha vida! Faço questão que não entrem, mesmo que me dê com elas e que vá gravitando à volta delas. Deixo-as pensar o que quiserem.
SRD - Aprendeu a defender-se nesse exercício. É um jogo: representa o papel da tonta, deixa que pensem que é estúpida.
SP - Acham que sou estúpida, que não estou a perceber..., mas estou a perceber! Quanto mais estúpida pensam que sou, mais vantagem me dão; quando quiser, dou a volta à situação. Não quero com isto dizer que sou uma inteligência... Pelo menos, não sou fútil.
SRD - Tem uma grande sensibilidade para as artes, sobretudo as plásticas e as performativas.
SP - Adorava ter o curso de História de Arte. Em vez de ter ido para Gestão, se tivesse ido para História de Arte, tinha-o acabado.
SRD - Desde há alguns anos, tem participado em peças de teatro. Desaguou naturalmente na representação?
SP - Sabe, quando comecei a pensar nisso, o que me pediam era para ser uma jarra de flores, um objecto bonito em palco. E fui... não aceitando. É muito difícil fazermos bem o que sempre quisemos fazer. Fazer bem o que não quisemos fazer é fácil – não há o risco da desilusão. Fui manequim da melhor maneira que me foi possível; mas se não tivesse sido tão boa, não me frustrava porque não era uma coisa que me interessasse muito.
SRD - Era um modo de vida, como se dizia à antiga.
SP - Exactamente. Ser actriz mete-me medo. Gosto mesmo muito de representar. Sofro imenso. Nas últimas peças fiz mulheres sofridas; na última, então, chorava todas as noites! E chorava realmente. Era difícil parar, nos agradecimentos continuava a chorar. Mas é um prazer enorme e um privilégio ter a oportunidade de viver vidas e sentir coisas que na minha vida nunca sentiria. E dá-me cor como pessoa. Como manequim, não me custa nada fazer um desfile horrível, num sítio horrível: é o meu trabalho.
SRD - Ser modelo era um modo de vida. E o projecto de vida?
SP - Nesta fase da vida, não sei. O ideal era ser actriz. Gostava de fazer teatro, cinema, até telenovelas – é uma escola diferente.
SRD - Nunca pensou numa coisa radicalmente diferente, como estudar História de Arte e depois viver disso, ter uma existência completamente nova?
SP - Gostava muito, mas tinha que ter alguém que me sustentasse. Preciso de pagar a renda da casa.
SRD - Fica um bocadinho prisioneira...
SP - Da minha liberdade? Imenso.
SRD - Quando falava em projecto de vida, pensava não só no trabalho, mas naquilo que marca uma vida; como ser filha de, neta de, mãe de. Quando pensa nestes termos estruturais, em que é que pensa?
SP - Penso sempre a minha vida sozinha.
SRD - Tem medo de quê?
SP - Não acho que seja ter medo. Mesmo que arranje uma pessoa, que andemos lado a lado, preciso de ter uma vida própria, de me sentir realizada a nível profissional e pessoal. Adoro crianças, mas um filho é uma responsabilidade muito grande. Um filho precisa de um pai, um bom pai. E nunca me apareceu ninguém na vida que pudesse sê-lo.
SRD - Que conversas é que tem com o seu pai? Falam de quê?
SP - Sei lá!, de tudo. Acho que por ter um pai tão bom ainda não consegui arranjar um pai para o meu filho. O meu pai abdicou de si por nós. Se não fossemos nós (a minha mãe, a minha irmã e eu), teria ficado em África e feito outra vida. Às vezes temos conversas sérias. Por exemplo, ele odeia que eu tenha piercings. Ralha-me ainda, tenho 34 anos, e mostra-me artigos das Selecções que dizem que os piercings fazem mal!
SRD - A revista Selecções corresponde a uma memória antiga?
SP - Na quinta há uma parede forrada com revistas das Selecções. Há uns anos peguei nas mais antigas e são lindas!, as ilustrações, os textos...
SRD - A revista Selecções reporta-a a um tempo de infância, um tempo de protecção, um tempo de inocência. É isso?
SP - É. Vim para Lisboa aos 8 anos e foi aí que comecei a perder a inocência. A quinta tinha os portões abertos, podia andar por todo o lado, completamente livre, toda a gente me conhecia na aldeia, era «a menina». Depois vim para um apartamento, para uma escola pública, foi tudo tão diferente.
SRD - Teve de aprender a sobreviver. Ainda lhe sobra inocência?
SP - Não faço ideia.
SRD - Ainda se consegue maravilhar, deslumbrar, entregar genuinamente a uma coisa?
SP - Isso sim. Ainda me sinto maravilhada, por pequeninas que sejam as coisas.
SRD - Por exemplo.
SP - A minha sobrinha, que tem 11 anos e é linda. A vista sobre o rio que tenho de minha casa.
SRD - Mas, que coisas procura realmente? O que é que importa? De que é que não abdica?
SP - Por mais cliché que possa ser, dos meus amigos. Os meus amigos mais chegados são a família que escolhi e que me faz muita falta. Não abdico de viajar, mesmo que não tenha dinheiro nenhum; não vou de avião, vou de carro! Não abdico de mim, acima de tudo.
SRD - Como é o seu dia típico: acorda a que horas, faz o quê?
SP - Desde que acabei a peça, em Junho, é: acordar às 9, 9.30, nadar, organizar o meu dia. Se tenho trabalhos marcados, faço-os, ou aproveito para ler e ficar em casa. Sempre que posso, durante a semana, dou um pulo à praia – sei de uma ou duas que nunca têm ninguém. No fundo, passo a vida a fugir das pessoas...
SRD - Sente-se sempre observada. É isso que é tão desconfortável? É por isso que foge das pessoas?
SP - Nunca tinha pensado nisso assim. Pensava só que não gostava de gente. Gosto muito de pessoas, odeio gente. Mesmo quando vou a uma inauguração, é trabalho, tenho que me vestir à Sofia Aparício.
SRD - É uma menina triste.
SP - São sempre as coisas que me chamam: menina triste, menina dos olhos tristes. As minhas tristezas são a razão das minhas alegrias. Se nunca tivesse sido triste nunca poderia ter sido tão feliz em alguns momentos.
Anabela Mota Ribeiro

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