'O que me safou foi não ser muito bonita'

'O que me safou foi não ser muito bonita'

por Filomena Martins Fotografia de Orlando Almeida/Global Imagens
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Veio na barriga da mãe, médica, de Angola nascer perto de Viana do Castelo, porque não queriam que, como o pai, tivesse «branca de segunda» inscrito no BI. Era gorda, grande e com as pernas tortas. Foi obrigada a andar de talas. Na escola era uma maria-rapaz, mas a mãe queria-a mais menina. Mandou-a aprender francês num colégio da Opus Dei na Bélgica e depois inglês em Cambridge. E disse sim ao costureiro Zé Carlos, de quem era cliente desde os tempos de África, quando ele lhe pediu para fotografar a filha aos 13 anos. Começou assim a carreira da modelo portuguesa mais camaleónica, que chegou a andar na Universidade Católica e assume ter feito duas plásticas e pisado vários riscos, entre eles consumir drogas a viver numa pensão. Nunca se achou bonita, irrita-a as meninas que querem ser modelos e hoje, quando lhe perguntam a profissão, diz-se atriz.
Quem é a Sofia Aparício despida dos papéis de modelo e atriz?
_Acho que uma perfeccionista que não gosta nada de perfeição. Não sei mais do que isto.
O que é que isso quer dizer?
_Que sou uma insatisfeita. Sou muito exigente comigo e já aprendi a viver com o ser perfeccionista, já percebi que vou morrer frustrada, porque a perfeição não existe. Mas também acho que, a existir, a perfeição teria muito pouca graça. No fundo, gosto do defeito, de defeitos, de cicatrizes e de rugas, e de objetos sem as proporções certas.
Qual é o maior defeito da Sofia?
_Não faço ideia! Há imensos! Muitos, sim.
Há a ideia feita, generalizada, de que uma mulher bonita não precisa ter mais nada a não ser beleza. É assim?
_Superficialmente falando, e se calhar em determinados círculos, diz-se isso. Mas é como dizerem que a droga é dinheiro fácil. Fácil como? A droga é uma coisa tão negativa e correm-se tantos riscos para se fazer esse negócio, que não percebo isso de a droga ser dinheiro fácil. Dizer que as mulheres bonitas só precisam de ser bonitas é um bocado a mesma coisa. O que é que é isso de ser só bonita se não houver uma estrutura de personalidade e de cabeça? As coisas não correm bem. E, além disso, beleza é coerência entre forma e conteúdo, não é só forma. Uma mulher ou um homem bonito, para mim, são pessoas que o invólucro que têm está de acordo com a personalidade.
E é fácil tirar partido de ser bonita?
_Não sei. Acho que é preciso, para se tirar partido seja do que for, saber e também perceber os objetivos. Obrigada por me estar a chamar bonita desde o princípio da entrevista, mas acho que exatamente o que me safou foi não ser muito bonita.
Por a obrigar a tentar melhorar sempre, a ser perfeccionista?
_Sim. Desde que comecei a fotografar, tinha 13 anos, que me diziam que tinha que fazer uma operação ao nariz, porque o meu nariz estragava os close ups . E nunca toquei no nariz, portanto, até a perfeição é... defeituosa.
Porquê tanta necessidade de não se mostrar, de se esconder atrás da sua beleza e do seu corpo?
_Para me proteger. E porque nunca tive vontade ou necessidade de me mostrar às pessoas. Costumo dizer que «não tenho nada para dizer ao mundo». Não me interessa nada que as pessoas me conheçam, a mim, como sou. Não parece, pois não? Nesta entrevista não estamos nada a ir por esse caminho [ risos ]! Sempre disse que, como manequim, era o que cada um fizesse na cabeça.
Quem é que a conhece verdadeiramente?
_Os meus amigos. Tenho uma família que criei, são meia dúzia, são os mesmos há algum tempo. E eles conhecem-me.
Chegou a andar dois anos na Católica, a sua mãe é médica e o seu pai engenheiro. Porque é que desistiu da formação e foi pelo caminho da moda, primeiro, e da representação depois?
_Porque era o mais difícil [ risos ]! Ou porque era mais proibido. Mas, principalmente, porque me pagava a independência. Mais uma caraterística minha, de que não me lembrei na primeira pergunta: sou dependente da minha independência, totalmente prisioneira da minha independência. Não gostava do curso que estava a tirar, mas era-me fácil, sempre fui boa aluna a matemática. Aliás, o primeiro curso que disse aos meus pais que ia tirar era história de arte.
E o que é que os seus pais queriam realmente que fosse?
_Não sei. Os pais querem o melhor para os filhos, sempre. A minha mãe queria que aproveitasse as minhas capacidades.
O que é que eles lhe disseram quando começou no mundo da moda?
_Aos 13 anos comecei a fotografar porque a minha mãe me deixou, obviamente. Ela era cliente do Zé Carlos e comecei por aí. Aos 15 deixou-me tirar o curso de manequim porque eu era muito Maria rapaz e ela gostava que eu fosse um bocadinho mais feminina. E depois é que descarrilei, porque percebi que dali podia ganhar dinheiro, podia ser independente, sair de casa dos meus pais e fazer a minha vida, viajar e viver.
Com o jeito para a matemática e a formação que teve de gestão, nunca pensou, depois de sair do mundo da moda, montar um negócio próprio?
_Não! Porque sou preguiçosa, porque não me é muito estimulante montar um negócio, porque os meus interesses não passam muito por aí. O suplemento de economia é sempre o último que eu leio no jornal [risos ]!
E qual é o primeiro?
_O cultural.
Do que é que a Sofia sobrevive, ou vive, hoje em dia?
_Faço um trabalho que adoro, que é o gabinete de comunicação da Clínica Milénio, uma clínica de estética. Isso me dá liberdade e independência para viver a minha vida, para pagar as minhas contas e para não ter, em representação, que é o que gosto que fazer, que aceitar tudo. E poder estudar, fazer workshops , essas coisas.
Que tipo de formação a esse nível da representação é que já fez ou está a fazer?
_Só tenho workshops . Este ano fiz três extraordinários, um com o John Frey, outro com a Marcia Haufrecht. E fiz também um com um senhor que se chama Lenard Peti, sobre a técnica de Michael Chekhov. Não consigo estar sem representar. Os outros artistas, músicos, pintores, mesmo que não tenham trabalho, estão sempre a treinar: um músico toca mesmo que não tenha concertos, um pintor está sempre a desenhar. Um ator, se não representar... eu sinto-me a definhar. E por isso preciso de ter constantemente coisas em que posso representar, não tendo trabalho como atriz hoje em dia, sou muito feliz nas minhas aulas.
Porque é que já se sente, hoje em dia, mais atriz do que manequim?
_Primeiro, porque tenho 42 anos [ risos ]! Demorei muito tempo a conseguir ser atriz, primeiro, por uma questão de respeito pela profissão. Entrei para o mundo da representação de uma maneira maravilhosa, um convite do Carlos Avillez para fazer a Dama das Camélias. Mas não tenho formação e por respeito aos atores e ao trabalho de representação tive muito pudor em dizer que era atriz durante vários anos. A partir de certa altura, isso saiu-me naturalmente. Agora, se me perguntarem qual é a minha profissão, digo que sou atriz, mesmo que não esteja a fazer nenhum trabalho.
Porquê a representação? Porque permite também esconder-se atrás do papel de um personagem, tem a ver com a sua personalidade?
_Sou muito curiosa e o mundo é muito grande, nunca vou poder o mundo todo. Consigo canalizar a minha curiosidade para ir descobrir coisas e a representação permite-me isso, mergulhar neste mundo e descobrir coisas. O me faz adorar fazer teatro são os ensaios, não é estar em cena. Isto é horrível, eu sei, os atores precisam do público e essas coisas todas, mas gosto dos ensaios. Gosto de ser plasticina e de me deixar levar. Percebi isto pela primeira vez quando fiz umas coisas com o Julião Sarmento, ele fez um molde do meu corpo para fazer umas estátuas. Gosto de ser plasticina para servir a criatividade e o talento dos outros. Eu sou sempre eu. Só que eu sou de muitas maneiras.
Há muitos atores e pessoas do mundo da arte que estão sem trabalho, estão a sentir tremendamente a crise. Como é que está a crise a está a afetar?
_A crise afeta-nos a todos. Trabalho como atriz, neste momento, não tenho. Mas, lá está, como gosto muito de fazer outras coisas e tenho a sorte de fazer um outro trabalho, vai-se sobrevivendo. Vivo com o dinheiro que tenho, se tenho muito não guardo nenhum, se tenho pouco, também não.
A cultura está a ser um dos principais setores a ser influenciados por esta crise ou a sofrer com ela?
_Sem cultura um povo deixa de existir. O que é que nós somos, nós portugueses, senão a nossa cultura? Como é que se pode matar aquilo que constrói a nossa essência? É quase como regredir, voltarmos a ser primitivos, voltarmos a só pensar em satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência e viver não é só sobreviver. Não gosto nada de falar de política, mas é a primeira coisa em que os governos deixam de investir. E isso assusta-me. Assusta-me mais isso do que a falta de dinheiro.
Conhece colegas seus em dificuldades?
_Conheço.
Pobreza mesmo?
_[ Suspiro ].
E na moda, como é que estão as coisas?
_Na moda? Não sei! A moda que gosto, enquanto reflexo do que se passa no resto da sociedade, enquanto criatividade, e não estou a falar só em Portugal, está bem, está boa. Pessoas com talento nós temos. E temos a sorte de ter boas indústrias de têxteis que vão funcionando
As pessoas ainda têm dinheiro para vestir-se, para comprar as coisas que veem os manequins?
_Acho que há crise na moda, mas hoje em dia as pessoas também se podem vestir muito bem sem comprar coisas caras. Várias lojas permitem isso. A roupa boa faz falta para uma pessoa se vestir bem, mas acho que o bom gosto faz muito mais falta.
Ia perguntar-lhe isso: é possível estar na moda, vestir bem, com roupa barata, ir comprar à Zara ou ao chinês?
_Claro que sim. Irrita-me um bocado quando dizem que gostos não se discutem, acho que gostos educam-se e a partir do momento em que uma coisa é educável pode ser discutida. Obviamente que há coisas que a si lhe ficam bem e a mim me ficariam mal, e coisas que a mim ficam bem e a si ficariam mal
As economias em crescimento, sobretudo Angola e a China, por exemplo, são agora as grandes clientes da moda em Portugal. Os nossos criadores estão preparados para este novo negócio que aí está?
_Eu tenho passaporte angolano! Mas Angola não é um grande cliente da moda portuguesa, porque eles preferem ir a Paris ou a Milão comprar, porque podem!
Acha que os nossos criadores não se prepararam também para este novo mercado?
_Há uns que se adaptaram melhor do que outros, que já vendem em Angola. Eu falo de Angola porque conheço. Mas não são, obrigatoriamente, aqueles que acho que são os melhores e mais talentosos. Mas, se calhar, os melhores e os mais talentosos para nós, europeus, são os que não conseguem ir esses mercados e se calhar vão desaparecer.
Há cada vez mais lojas, apesar desta crise, de grandes marcas, a chegar a Portugal, sobretudo a Lisboa?
_Não sei! No outro dia passei na Louis Vuitton e estava cheia de chineses ou japoneses. Se calhar também vivem de portugueses que não conheço.
Qual foi a peça de roupa mais cara que já comprou?
_Não sei. Por sapatos faço loucuras, peças de roupa não. Todos os criadores a quem comprei, nunca foi na loja a preços normais, ou comprei em saldos, ou comprei em outlets. Estou-me a lembrar de um vestido da Ann Demeulemeester, que é há anos a minha criadora preferida, mas comprei num outlet . Os sapatos fazem-me mas vezes pisar um bocadinho o risco. A roupa não. Uns McQueen, uns Jimmy Choo...
Tem alguma peça de roupa fetiche?
_Tenho, duas coisas. Uma saia do Mário Matos Ribeiro, linda, uma saia pencil preta que tem uma racha até cá acima e tem incorporado na saia um cinto de ligas! É extraordinária, tão antiga! E um vestido do Zé Carlos, que ele me fez, com um tecido que trouxe de propósito para mim, escuro, com uns pássaros em dourado, muito justinho, também pelo joelho, daqueles orientais. Estão no meu armário desde sempre.
Qual é o seu criador favorito, nacional e estrangeiro?
_Nacional, é um bocado feio dizer... Mas digo! Não me importo nada. Gosto especialmente do Aleksandar Protich e reconheço imenso talento ao Filipe Faísca também. Estrangeiros, tirando a Ann Demeulemeester, que faz roupa para mim há anos e não sabe, sei lá... Quando o McQueen era vivo, achava-o extraordinariamente talentoso. A moda já não é um mundo que continue a acompanhar. Não percebo nada, hoje em dia!
O que é que as manequins, as modelos, quando deixam de fazer passerelle, podem esperar da vida?
_Não sei... Há uma coisa que sempre me fez muita confusão: porque é que há tantas mulheres adolescentes que querem ser modelos! Futilidade, superficialidade, falta de interesses, falta de acompanhamento em casa? Fui manequim e aprendi a gostar de ser manequim, o que não percebo é o que querem? Ser bonito? Ninguém nos paga para ficar bonitas, pagam-nos para nos porem feias e nós fazermos daquela porcaria uma coisa bonita! É muito pouco querer-se ser modelo. Se tivesse uma filha que aos 13 ou 14 anos me dissesse «o meu sonho é ser modelo», dava-lhe um estalo! Ou então ficava muito frustrada comigo. E não tenho nada contra as manequins, como deve imaginar! Fui e vivi no meio delas, mas acho que isso é muito limitador, demonstra uma falta de interesse humano e intelectual, pelo mundo. Querem fazer o quê?! Querem estar ali bonitas a tirar fotografias? Querem-se mostrar? O que eu acho bonito, se calhar outro acha feio! Quando fui manequim, sempre fui péssima a fazer castings. Via miúdas a chorarem por não terem sido escolhidas e isso é uma coisa que me aflige, porque deve ser um ferimento tão grande, sofrer porque alguém acha outra mais bonita do que ela. Não é fácil, é preciso ter uma muito boa estrutura familiar como eu, felizmente, tive. Então imagine o que é depois deixar de ser manequim para essas miúdas.
Passou dificuldades, agora ou no passado, em termos da falta de dinheiro da moda e da representação?
_Há alturas em que tenho mais dinheiro e alturas em que tenho menos. Já vivi duas vezes na Pensão Londres...
Mas porquê? Por falta de dinheiro para ter uma casa?
_Não! Circunstâncias da vida. Até nem era barato. Pagar uma pensão durante um ano inteiro acaba por ser um aluguer de uma casa. Se me perguntar se já me faltou dinheiro para comer, isso não, felizmente. Se já andei a contar tostões algumas vezes, claro que sim. E já houve alturas em que tive mais dinheiro, viajei imenso. Desde miúda que olho para os sem abrigo e percebo que é possível qualquer um de nós chegar ali. Eu também. Sei que tenho um longo caminho a percorrer, ou muita merda para fazer, para ir lá parar. E não tenciono. Mas não tenho filhos, se calhar por isso também não me assusta assim tanto passar dificuldades, porque os meus pais, a minha mãe, o meu pai morreu este ano, a minha mãe está bem, a minha irmã também.
Porque é que não tem filhos, ou não teve?
_Por opção.
E agora, que já passou dos 40, não se lamenta?
_Nada, nada. Acho que há várias razões para não ter tido um filho. Podia dizer que nunca encontrei um pai, mas isso era um disparate, porque a verdade é que nunca tive vida para ter um filho. Ou tinha alguém que me ajudasse a tomar conta do filho, como antigamente os nossos pais tinham, ou não dava. E por causa da minha independência também, acho eu. Ser mãe não é parir, é dar oportunidades a uma criança.
Vamos voltar às profissões. Modelo muito nova, depois teatro, cinema, televisão, quer com programas, quer com novelas, o que é que mais gosta nisto tudo?
_O que eu mais gosto de fazer? Teatro. Durante os ensaios gosto de ser a tal plasticina para o encenador. O teatro faz-me a construção de uma personagem, da descoberta. É uma coisa um bocado esquizofrénica, mas é tão bom poder fazer uma assassina e tentar perceber aqui dentro o que é que me levaria a matar. E a sensação de uma psicopata, sendo que na minha vida, obviamente, não se mata, nem ninguém merece ser morto. A representação permite-me viver isso, sem que isso tenha consequências drásticas para o mundo.
Qual foi o personagem mais complicado que já interpretou?
_As personagens que envolvem violência emocional, de alguma forma, tocam-me. Perdas são as mais difíceis. Consigo-me lembrar da sensação de sofrimento, a sensação de sofrimento com que ia para casa a seguir, em quase todos eles. Mas não consigo escolher um.
No dia-a-dia, mantém alguns tiques da personagem? Ou despe-se facilmente dos papéis?
_Para mim não é fácil, se calhar aí falta-me formação. E não é só largar os tiques ou os gestos. Não me apetece deixar aquela pessoa ir completamente embora.
No dia a dia, como é a Sofia? Com maquilhagem ou sem? Com ou sem sapatos altos?
_Sem sapatos altos, sem maquilhagem. Ando assim. Hoje vesti-me um bocadinho melhor, para as fotografias [ risos ]! Mas calças de ganga e t-shirt.
É a favor ou contra as operações plásticas?
_Sou a favor de tudo aquilo que faça as pessoas sentirem-se melhor com elas próprias.
O que é que faria e o que é que nunca faria?
_Não sei o que é que nunca faria. Mas acho que nunca poria rabo... (risos) E o que é que faria? Neste momento, não faria nada. Já fiz o que tinha a fazer há muito tempo.
O que é que mudou no seu corpo?
_As mamas... E os lábios. Nunca me lembro dessa parte!
Porque é que decidiu, numa determinada fase, pôr aquele dente de ouro?
_Ainda o tenho. Está lá em casa, é uma capa de pôr e tirar. Adoro. A única coisa que, se calhar, não voltaria a fazer, era usá-lo num sítio onde houvesse fotógrafos. Foi um bocado inconsciente, porque deram-mo no dia anterior e estava tão excitada com o meu dente de ouro que andei com ele! Ponho-o para jantar com os meus amigos e para sair! Há anos que queria um dente de ouro, só que não ia estragar os meus. Nunca pensei que desse tanto falatório. O que me é indiferente, mas é estranho!
Era a modelo camaleão da moda em Portugal, chegou a rapar o cabelo. Eram exigências dos criadores ou decisões suas?
_Tudo eu. É uma necessidade de mudança que tenho, constante. Se eu não tivesse mudado tanto, acho que não tinha conseguido ser manequim tantos anos. Tudo o que fiz ao cabelo foi sempre por decisão minha. Quando disse ao meu cabeleireiro, ele insultou-me, desligámos o telefone. Depois ligou de volta, a Moda Lisboa ia começar no dia a seguir e dá sempre jeito uma notícia, o Independente ia fotografar. Foi o Zé Carlos quem mo rapou.
E depois sentia-se confortável, sem o cabelo?
_Nunca me vi ao espelho, nunca me olhei ao espelho e me achei bonita. A trabalhar, sei se o boneco está bem feito ou se o boneco está mal feito. Quando o Zé me rapou a cabeça, olhei para o espelho e achei que estava linda. Foi a primeira e única vez na minha vida que eu me vi... «sou eu!», não sei porquê.
Alguma vez lhe exigiram alguma coisa que não fizesse, que não aceitasse fazer?
_Não.
E o que lhe custou mais ir fazer, de tudo que lhe exigiram?
_Nada.
Como é que mantém a forma física? É aquela pergunta de que todas as mulheres querem saber a resposta.
_Não como carne há dez anos, mas na altura até engordei um bocado, depois voltou ao normal. Mas não acho que seja por aí, até porque é muito menos calórico comer um bife grelhado e salada do que comer o que eu como para ter proteínas, soja, feijão, grão, que são a base da minha alimentação. E em relação ao ginásio, sou muito exigente comigo, mas também sou um bocado preguiçosa. Sou capaz de, durante um mês, ir quase todos os dias porque acho que estou horrível e estou toda descaída, e depois fico dois ou três anos sem lá ir. Em miúda fiz natação de competição, fiz rítmica desportiva, depois comecei a ser manequim e deixei tudo. Aos 31 achei que estava a abusar da sorte e fui fazer kickboxing . Acho que me mexo muito, e não gosto de parar. Tenho alguma agilidade, faço hoje em dia o que fazia com 20 anos em termos de agilidade.
Acha que a moda está a exigir aos manequins uma magreza extrema?
_Voltando um bocadinho àquela parte das miúdas que querem ser manequins, a anorexia é um problema que tem a ver com problemas psicológicos, não com uma imagem que a moda tem de vender
Não acha que há uma exigência pelo facto de as lojas terem apenas números pequeninos?
_É mentira! Isso é mentira, as lojas não têm só números pequeninos. Às vezes vejo-me um bocado aflita. Conheci para aí duas manequins anoréticas e não eram boas manequins, porque a pele começa a ficar mal. Uma coisa é ser-se magro saudável, outra coisa é ser-se magro de não comer, desnutrido.
E antes de deixar de comer carne, quando ainda era manequim, que cuidados tinha com a comida?
_Sou muito comilona. Tenho um amigo que goza imenso comigo, quando passamos férias juntos, porque quando acorda de manhã já não há nada no frigorífico. Acordo várias vezes durante a noite para ir comer. Mas tenho hábitos alimentares saudáveis, porque a minha mãezinha não me deixava comer quando era miúda, porque era gordinha. E gordinha é generoso, era gorda. E, por isso, ensinou-me a comer. Como tudo o que quero, não quero é comer tudo que as outras pessoas querem comer. Se for trabalhar, não gosto de almoçar, ficar pesada. Como quando tenho fome, durante o dia. Não me sinto nunca na obrigação de «agora vou almoçar»...
Tem medo de engordar?
_Tenho.
E de envelhecer?
_Não.
Voltemos atrás, falemos dos riscos e dos perigos do mundo da moda e do teatro? Sexo, droga, assédio?
_E rock'n'roll [ risos ]? Não acho que haja mais sexo e droga neste meu mundo do que no mundo dos advogados , por exemplo. Nós temos é profissões mais expostas e somos muito mais engraçados enquanto personalidades do que os advogados. Portanto, ninguém liga nenhuma aos advogados e vêm coscuvilhar a nossa vida. Se calhar as pessoas protegem-se menos, por serem mais liberais ou cabeças mais abertas. Não acho que exista mais do que nos outros mundos.
Consumiu drogas. Porquê?
_Se me disserem para não ir por ali, eu vou só lá um bocadinho e já volto.
Foi e voltou?
_Sim. A minha independência safa-me quase sempre, sou prisioneira dela, não quero ser dependente de nada. A única coisa de que não me irrita ser dependente é dos cigarros.
E assédio sexual? Começou tão nova, sentiu isso na pele? Como é que se defendeu?
_Sim, mas não é só no meu mundo, não é só no mundo da moda. Foi difícil. Tratavam uma miúda de 13 ou 15 anos como se fosse mulher adulta, porque eu parecia uma mulher adulta. Tive a sorte de ter muito boa estrutura de apoio, nunca nada correu mal a esse nível.
Como é que foram esses primeiro momentos na moda aos 13 anos? Como é que uma menina, de repente, passou a ser uma mulher?
_Entre os 13 e os 15, foram muito bons e muito protegidos, porque só fotografava para o Zé Carlos e era ótimo brincar às bonecas com ele. Lembro-me que a primeira sessão fotográfica que eu fiz com ele, lembro de várias coisas desse dia. O Zé estava a maquilhar-me, eu superenvergonhada.
Já tinha usado maquilhagem?
_Não, nunca. Dormi maquilhada e tudo nesse dia! Estava tão envergonhada que a minha mão caiu na perna dele e não sabia se havia de tirar ou não. Vergonha mesmo! De repente, vesti-me, o fotógrafo pegou na câmara e comecei a fazer coisas que nem percebia. Pediam-me para mudar de roupa e lá ia muito envergonhada, depois punham-me outra à frente da câmara e parecia que era outra coisa. Mal saída da frente da câmara ficava outra vez aquela menina muito envergonhadinha, que pedia desculpa por tudo. E dormi maquilhada. Acordei linda, como deve imaginar.
Estava-me a dizer há pouco que até era um bocadinho maria-rapaz. Portanto, as coisas dos vestidinhos e das pinturinhas...
_Não era muito a minha coisa. Nunca foi muito a minha cena. Mesmo hoje em dia, para mim sempre foi só para trabalhar. Tenho uma amiga que é muito menina, muito arranjadinha, arranja-se todos os dias, veste-se bem, penteia o cabelo, põe rímel. Às vezes ando ao lado dela, eu é que é suposto ser gira, e pareço a prima pobre que veio não se de onde, porque estou de ténis, que podem estar rotos, as calças de ganga também, a camisola foi escolhida porque estava frio se calhar nem fica bem com o resto. E isto não é «soublasé », é falta de atenção mesmo!!! Às vezes chego ao elevador e vejo-me ao espelho, «ups, vou voltar a casa».
Estava-me a dizer que esse período entre os 13 e os 15 foi ótimo. E depois dos 15?
_Foi mais difícil. Saí um bocado da proteção do Zé e comecei a trabalhar para toda a gente, a viajar como manequim e a ter que enfrentar o mundo. Mas é bom ter dificuldades, não tenho medo de passar dificuldades, tenho medo é de não viver.
Mas há 20 e tal anos, andar pelo mundo sozinha, aos 15 anos, não era propriamente normal.
_Para mim não era muito anormal, porque os meus pais mandaram-me estudar para fora pela primeira vez aos onze anos e a partir daí sempre estudei fora. Fui primeiro para a Bélgica, depois fui para Reading, depois fui para Cambridge...
Conte-me essa história: nasceu em Viana, certo? Depois foi para a Angola?
_Os mais pais vivam em Luanda. A minha mãe não queria que, tal como o meu pai, eu fosse branca de segunda. O meu pai era branco de segunda, tinha no Bilhete de Identidade «branco de segunda». E isso dificultou-lhe a vida. Nunca o impediu de fazer uma grande vida, mas cá era preto e lá era branco, não era ninguém em lado nenhum. A minha mãe não quis isso para mim e veio-me ter cá. A casa de família era numa aldeia ao pé de Viana do Castelo. Nasci lá e voltei depois do 25 de Abril
Retornada, como se diz?
_Sim. Fui viver com as minhas avós na quinta. Sem nada, mas não fomos os que viemos pior. O meu pai era engenheiro civil e fazia estradas, e em Luanda era preciso fazer muita coisa. Os meus avós, os dois casais, eram pessoas modestas, viviam do trabalho. Os meus pais conseguiram fazer a vida deles, a minha mãe médica, o meu pai engenheiro em Luanda a fazer pontes, que era a coisa que ele mais adorava fazer, fez pontes lindas, devem tê-las deitado todas abaixo. A minha irmã ficou interna num colégio no Porto. Houve um tempo de adaptação, depois a minha mãe ficou na Estefânia e o meu pai ficou numa empresa de construção civil em Viseu. Vim viver com a minha mãe com oito ou nove anos, o meu pai veio depois e a minha irmã também.
Como é que foi, aos onze anos, ir para a Bélgica estudar?
_Foi ótimo! Porque era um colégio da Opus Dei. Como tinha 11 anos tinha que ir para um colégio interno, a minha mãe não me deixaria ficar em casa de uma família. Mas não sei porque é que a minha mãe escolheu Bélgica, flamenga ainda por cima, para eu ir estudar francês por três meses. Depois voltei para lá com 12, com 13 fui para Reading. E Cambridge com 14. Cresci no mundo! A minha infância foi ótima. Até vir para Lisboa foi muito mais feliz. Era livre, completamente livre. Na quinta, na aldeia...
Li que queria ser astronauta quando era miúda.
_Sim! Era a única coisa que queria ser na vida. E a minha mãe dizia "ó filha, não digas isso, que vergonha". Pronto, a partir daí, não dava para ser astronauta, havia de ser qualquer coisa. Tanto fazia. Mas sempre quis ser só astronauta. Houve uma altura em que dizia que não havia de morrer sem viajar no espaço. Com esta crise, dificilmente terei algum dia o dinheiro para isso, mas gosto de pensar que ainda o farei antes de morrer.
E além de astronauta. Como era a menina Sofia?
_Muito feia! Sempre fui grandalhona, mas era feia. Na escola era a maria-rapaz, one of the guys , não era nada a miúda de que os rapazes gostavam, nada disso. Nem sabia que tinha isso. Só descobri o que isso era depois de ser manequim?
Como foi essa relação/ligação ao Zé Carlos?
_A minha mãe era cliente dele. O Zé era cabeleireiro e fazia roupa, tinha um atelier. Ela já era cliente do Zé em Luanda e continuou a ser cá. Ainda me lembro da primeira vez que o Zé me cortou o cabelo. Tinha-o comprido e ele fez-me um corte pequeno. Foi nessa altura que pediu à minha mãe para me fotografar e a minha mãe disse que sim. Acho que ela queria que eu fosse um bocadinho mais interessante.
Que história é essa de ter pernas tortas?
_Não tenho grande história. Era uma doença. Cheguei a ter de usar talas. E tinha de fazer uns exercícios todos os dias, que eram pernas de cavaleiro, uma coisa que odiava. Dormia de talas em miúda. Lembro-me das talas. Eram horríveis, tinha de dormir de barriga para cima. Deve ser por isso que eu agora só consigo dormir de barriga para baixo. Nasci com cinco quilos, sempre fui grande e gorda.
Desde quando é que se lembra de si assim, com essas medidas?
_Desde os 17.
Qual foi o seu melhor desfile de todos?
_Adorava fazer os desfiles do Osvaldo Martins porque eram muitos difíceis de fazer. E ele não nos punha bonitinhas, usava fita cola a torcer a cara. Elas achavam que estavam feias e eu que estava linda. Só não gostava de fazer os desfiles quando perguntava ao criador qual era a atitude e eles me diziam ser bonitinha,«what?» . Não sei ser bonitinha, como é que eu sou bonitinha com este nariz?!
Acontece-lhe algum grande desastre, nalgum desfile?
_Caí uma vez na passerelle, mas porque a criadora me empurrou. Era Fátima Lopes e eu tinha uma mama à mostra. Ela tinha a mão nas minhas costas e quando ela me deu o impulso tropecei na bolha da passerelle, entrei disparada assim e caí no colo do senhor da primeira fila. Só pensava «não me posso rir, não me posso rir». Tapei a mama, pedi desculpa e fui desfilar. E já tirei os sapatos porque não estava a conseguir andar.
Porque é que trocou a Face, a Fátima Lopes, e de repente mudou de agência?
_Vim com as pessoas com quem trabalho ainda hoje. Com a Elsa Gervásio, com a Andreia Gomes e com a Vanessa Veloso. Era com elas que trabalhava. Elas é que são a minha agência, estejam aqui ou ali, ou acolá.
Qual foi o seu desfile melhor pago?
_Não quero dizer... [ risos ]. Pronto. Um em que ganhei uns milhares de contos. Poucos. Menos de dez, pronto. Que é para não acharem que são dezenas de milhares de contos.
O que é que perdeu ao saltar, quase diretamente, do mundo de menina para o mundo de mulher?
_Durante muito tempo senti que tinha perdido a adolescência. Hoje em dia já não, é mais um saber que não tive uma adolescência normal, aquela coisa de sair com os amigos ou ter o grupo da escola, da universidade. Como comecei a trabalhar ainda andava no liceu e como os meus pais sempre foram muito exigentes, trabalhava e estudava. Portanto, aqueles namoros de adolescentes e aquelas coisas todas de adolescente, não... Mas não faz mal, descobri o mundo de outra maneira e descobri o mundo por mim. Não é um lamento.
Vou voltar à primeira pergunta: a Sofia, aparência produzida, acho que todos conhecemos. Dispa-se dela e diga quem é a verdadeira Sofia?
_É esta, é o que vê. É isto. Eu sou esta, filha dos meus pais, não sou mais nada do que isso,
Como é que quer ser lembrada?
_Eu só quero ser lembrada pela minha sobrinha e pelas pessoas, pelos meus amigos que morrerem depois de mim. As outras pessoas vão-se esquecer de mim rapidamente. Mas, se se lembrarem, espero que se lembrem de uma pessoa honesta e consistente.
PERGUNTAS DE ALGIBEIRA
O livro da sua vida?
Não tenho nada «um da minha vida». E se as outras perguntas são a música e o filme, não quero! Tenho de lhe dizer um livro? Não consigo. O último que li que me marcou, mesmo, foi o Shantaram . Lembro-me de ler o Sangue do Meu Sangue e de ter ficado extasiada. Lembro-me do Sputnik, Meu Amor , do Murakami. Os livros do homem agora irritam-me imenso, mas adorei esse. Os Irmãos Karamazov acho que foi o primeiro livro que li com que fiquei mesmo fascinada...
Vamos passar para os filmes, mas não para o filme da sua vida, mas uma cena de um filme. Só para dificultar.
_Uma cena... ainda por cima nem me lembro dos finais dos filmes que gosto! N' As Horas , que é dos poucos filmes que fazem justiça ao livro, a Meryl Streep tem uma cena com o amigo dela que está a morrer de sida que é extraordinária. Não me pergunte pelo que dizem, porque só me lembro dos grandes planos, da luz e deles. E no Boys don't Cry , com a Swank, há uma cena extraordinária, quando a miúda de que ela gosta descobre que a prótese que ela tem é uma prótese e não um pénis real. Lembro-me das cenas, mas não sei o que é que elas dizem, porque a maior parte das vezes o texto é secundário. O que interessa é a emoção que eles nos fazem sentir.
Uma música para namorar?
_Qualquer música, desde que não seja eletrónica nenhuma que isso faz-me mal à cabeça.
O que é que ainda vê na televisão?
_O telejornal e algumas séries, poucas agora, que o Dexter está de férias, nem sequer séries tenho visto. Ah, vejo Uma Família Muito Moderna .
Um lema de vida?
_Querer tudo e não querer nada. E conseguir não querer nada, porque isso é que é querer tudo. Não sei, mas é isso.
Contra a crise?
_Não desistir.
Lê jornais? Quantos minutos?
_Depende. No fim de semana demoro mais tempo, porque me dedico. Normalmente, no fim de semana leio as notícias quase do princípio ao fim. Durante a semana, confesso que leio na diagonal.
De quanto em quanto tempo vai ver o seu email?
_Passam-se semanas, a não ser que esteja à espera de alguma coisa.
E é telefonodependente?
_Não. Sou 'skypodependente»', porque tenho amigos longe e o Skype deixa-me falar com eles quase todos os dias.
E redes sociais?
_Nada. Não tenho Facebook, não tenho nada para dizer ao mundo, não quero conhecer mais ninguém. Sou física e gosto muito de tocar nas pessoas e nos meus amigos. Há amigos meus que estão proibidos de pôr fotografias minhas, tipo vamos hoje jantar e amanhã põem as fotografias no Facebook e estou lá. Não quero que as pessoas saibam onde é que fui jantar! Acha que me estou a esconder também? Mas a verdade é que não quero que as pessoas saibam, não têm nada a ver com a minha vida.
Que país do mundo é que lhe falta visitar?
_Tantos! Austrália é um deles, fora Angola, Marrocos, Moçambique, Cabo Verde e África do Sul, todos os outros de África. África é o meu continente, o meu coração é dali. Estive lá dois anos ou três anos e senti-me muito felizarda por ainda ter conhecido África assim, andar no mato, gosto de andar descalça, no mato com os pés na terra, já sei, os bichos e essas coisas todas, mas pronto. Aquela terra, África, é uma coisa...
Um país para passar a reforma, ou um sítio?
_Moçambique.
Ficou alguma pergunta por fazer?
_Já me fez de mais!

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